Volta Redonda, no interior do Rio, ganha bar dedicado à boemia de Zé Pelintra
Em um país de raízes tão diversas como o Brasil, as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, continuam sendo alvos de intolerância e invisibilização. Apesar de seu papel fundamental na formação da identidade cultural brasileira, praticantes dessas religiões frequentemente enfrentam discriminação em espaços públicos, instituições e até em políticas de Estado. Neste contexto, a criação e fortalecimento de espaços que homenageiam, celebram e protegem essas tradições não é apenas um ato de valorização cultural, mas sim uma forma de resistência.
De centros culturais a feiras afro-religiosas, de bares temáticos a caminhadas de fé, esses espaços se tornam refúgios de identidade, acolhimento e afirmação. Eles promovem não apenas a espiritualidade, mas também o conhecimento, a arte, a música, a culinária e a sabedoria ancestral. A presença desses lugares em ambientes urbanos desafia a lógica excludente que empurra as religiões de matriz africana para a periferia, tanto física quanto simbólica.
Falando em símbolo potente, não podemos deixar de falar das caminhadas em homenagem aos orixás, como a tradicional Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, realizada anualmente no Rio de Janeiro. A iniciativa reúne milhares de pessoas de diversas crenças, mas é puxada pelas lideranças de terreiro. Mais do que uma manifestação religiosa, a caminhada é um grito coletivo contra a intolerância e a violência. Em um país onde terreiros são constantemente atacados e símbolos sagrados destruídos, caminhar em público com trajes brancos e instrumentos sagrados é, por si só, um ato político.
Além disso, bares, casas de show e restaurantes com temática afro-brasileira também cumprem papel importante. Esses locais funcionam como pontos de encontro onde cultura, música, fé e ancestralidade se encontram. Ao programar rodas de samba de raiz, apresentações de afoxé ou noites de poesia negra, esses espaços fortalecem o orgulho afrodescendente e aproximam o grande público das expressões das religiões de matriz africana — muitas vezes tratadas de forma caricata ou estigmatizada.
Bar do Zé
É nesse mesmo espírito de valorização e enfrentamento ao preconceito que nasceu, recentemente, em Volta Redonda, na região do Médio Paraíba do estado do Rio de Janeiro, o Bar do Zé — um espaço inteiramente dedicado à cultura afro-brasileira, que vem chamando atenção pela sua proposta ousada, acolhedora e, acima de tudo, profundamente respeitosa com as religiões de matriz africana.
Inaugurado há poucas semanas, o bar presta homenagem direta a Zé Pelintra, entidade muito cultuada nas religiões afro-brasileiras, especialmente na Umbanda e em algumas tradições do Catimbó e da Jurema. Conhecido como um malandro de chapéu branco e terno alinhado, Zé Pelintra transita entre mundos: é o guardião dos becos, defensor dos humildes, amigo dos que sofrem e um símbolo de sabedoria e astúcia. Ao mesmo tempo figura espiritual e símbolo cultural, ele representa o povo preto, favelado e marginalizado que encontrou na fé um caminho de resistência.
O bar temático tem como inspiração a boemia, o Santuário de Zé Pelintra e o charme da Lapa, bairro icônico do Rio de Janeiro que, assim como seu Zé, mistura samba, fé, rua e história. A decoração remete às tradicionais rodas de samba aos terreiros urbanos onde fé e festa caminham lado a lado. O cardápio também é uma celebração à ancestralidade: pratos e drinks levam nomes de entidades, orixás e guias, tudo pensado para informar, acolher e desmistificar.
Mas o Bar do Zé não é só um ponto gastronômico ou cultural: é um santuário moderno. Frequentadores relatam que, ao entrar, sentem-se livres para expressar sua fé sem medo. Muitos contam que, pela primeira vez, podem expressar sua fé sem o temor de olhares tortos ou agressões. A música, o ambiente e a energia do local criam um espaço onde a espiritualidade é vivida de forma natural e respeitosa.
Os proprietários, que também são praticantes de religiões de matriz africana, revelam que a ideia do bar surgiu a partir de sonhos e mensagens recebidas em giras espirituais — um chamado direto da entidade Zé Pelintra. “Há quatro meses, sonhei várias vezes com Zé Pelintra e ao ir ao terreiro que frequentamos, ele me disse que o que precisava já tinha feito. Que era me levar até a casa e me abençoar. E o que aconteceria dalí para frente, eu iria saber. De lá para cá, ele veio dando direcionamento para gente. Até que, através de uma brincadeira, comentamos que faríamos o Bar do Zé. Aí, em poucos meses, a brincadeira se tornou uma realidade”, comentou Kaio Carneiro, proprietário do bar, ao lado de sua esposa, Pâmela Fernandes.
A realização do projeto, no entanto, não tem sido isenta de obstáculos. Desde a inauguração, Pâmela relata episódios de intolerância religiosa: o conhecido ‘boca a boca’ e principalmente através das redes sociais. Apesar disso, eles não se deixam abalar. Pelo contrário, afirmam que cada ataque reforça a certeza de que estão no caminho certo. “Também tem muita gente nos procurando e afirmando que somos a esperança que eles precisavam”, relatou Pâmella.
O Bar do Zé se soma, portanto, a uma rede crescente de espaços que não apenas celebram a espiritualidade afro-brasileira, mas também a transformam em instrumento de empoderamento, educação e resistência. Num país onde ainda se destrói terreiros e se ataca filhos e filhas de santo, criar um ambiente onde a fé é honrada e vivida com alegria é, sim, um ato revolucionário.
O local funciona de terça a domingo, das 18h às 23h, com samba todos os dias. Mais informações você encontra no perfil do bar no Instagram.